Kristin Kobes Du Mez: O Que Cremos Acerca Da História?

Matheus Monteiro do Vale
6 min readJun 9, 2021

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Evangélicos nos Estados Unidos têm formado as suas próprias narrativas históricas por décadas. A verdade pode ser profundamente perturbadora.

Rev. Billy Graham falando para uma audiência de cerca de 40.000 pessoas no Polo Grounds em Nova York em 1957. Allyn Baum / The New York Times

Por: Kristin Du Mez

Dr. Du Mez é professora de História e Gênero. Dedicada ao estudo de como política, religião e gênero se conectam.

27 de Maio, 2021. Publicado pelo New York Times. É uma reflexão pessoal parte da série “The Big Ideas” promovida pelo jornal.

Crenças tem uma história. Como uma historiadora da Religião, muitas vezes tomo isso como consenso. Havia esquecido quão estranha essa noção é para muitos evangélicos nos Estados Unidos.

Evangélicos se identificam como aqueles que “creem na Bíblia”: Pastores evangélicos pregam “valores bíblicos”, e líderes desse movimento promovem valores “tradicionais” no mundo secular e na esfera pública. Pesando suas visões sobre questões que variam desde impostos até leis sobre o controle e porte de armas. Muitas dessas crenças e visões são amarradas e vendidas num pacote como “bíblicas, atemporais e eternas”.

Evangélicos não são os únicos que consideram suas crenças eternas e imutáveis. Para crentes de todos os tipos, a própria visão de verdade assume um caráter atemporal intrínseco, mas o conhecimento histórico tem uma maneira de complicar essa certeza. Ao revelar não somente continuidade mas também às mudanças consideráveis ao longo do tempo, a história demonstra que muito daquilo que se define como tradicional tem, na verdade, uma origem bem recente. Ao situar questões históricas em seus contextos mais amplos, é revelado que fatores econômicos, políticos e culturais influenciam o que as pessoas creem ser verdade em períodos específicos da história humana.

Contudo, de maneira incomum, evangélicos têm se mantido desatentos e ignorantes de como suas próprias histórias se encontram mapeadas em histórias maiores. Não é que os evangelicos ignoram a história completamente, mas eles tendem a preferir suas próprias versões de eventos. Em um nível popular, pseudo-historiadores têm brincado com evidências históricas para criar contos fantasiosos sobre as origens do Cristianismo Americano. No meio acadêmico, alguns historiadores evangélicos produziram narrativas que tendem a encobrir os lados mais obscuros das suas tradições religiosas.

Para aqueles que só tiveram contato com essas versões alteradas do seu próprio passado, o encontro com uma análise mais complexa da história do evangelicalismo é bem perturbador. Muitos ficam chocados, por exemplo, quando descobrem que o Rev. Billy Graham teve posições decididamente mistas acerca dos direitos civis, era politicamente ambicioso, promovia o militarismo Norte-Americano e tolerava tacitamente atrocidades no Vietnam. Esse não era o Graham que eles conheciam e amavam.

A história choca porque mostra que as coisas nem sempre foram do jeito que são atualmente. Um bom exemplo é o fato de que houve um período onde muitos Protestantes conservadores rejeitaram exatamente a ideia de uma “América Cristã”. Aqueles que foram ensinados que o patriarcado é essencial à Ortodoxia Cristã se surpreenderiam ao conhecer a longa história do feminismo evangelical

Evangélicos também criaram uma grande cultura do consumismo que reforça essa visão acrítica e descomplicada do próprio movimento. Rádios Cristãs, publicadoras Cristãs, livros didáticos cristãos e matérias de homeschooling reforçam narrativas que trazem os evangélicos sempre do lado bom, corajosamente fazendo a obra de Deus no mundo. Os pecados da nação — racismo, sexismo, xenofobia, nacionalismo branco — não são representados como problemas endêmicos à tradição, mas sim como desvios do “verdadeiro evangelicalismo”. Críticas vindo de fora são ignoradas ou desconsideradas por serem vistas como ataques, reforçando o complexo evangélico de perseguição. Quantias enormes de lucro provenientes da cultura consumista evangélica estão em jogo, por isso motivações ideológicas e financeiras estão unidas para manterem esse grupo consumidor ativo.

Compreender que crenças possuem uma história não impede um compromisso com verdades fora da história, nem impede os crentes de trazerem textos sagrados e percepções teológicas para influenciar suas decisões pessoais e visões políticas. Mas leva os crentes a considerar como forças históricas e lealdades culturais podem ter moldado suas próprias convicções profundamente arraigadas, até mesmo de maneiras que vão contra os ensinos básicos da sua fé.

O poder chocante da história se tornou explicitamente claro para mim no último verão, quando meu livro “Jesus and John Wayne: How Evangelicals Corrupted A Faith And Fractured A Nation” (2020, Liveright) — “Como evangélicos corromperam a fé e fragmentaram uma nação” — foi publicado. O livro traça como o ideal militar e militante da visão branca de masculinidade cristã veio a permear a cultura popular evangélica nos Estados Unidos. Nos últimos 75 anos, ideais heróicos inspirados em soldados, guerreiros e cowboys — muitos representados nas telas de cinema por homens como John Wayne, e Mel Gibson no filme “Coração Valente” — substituíram a própria fé, trocando os ensinamentos bíblicos como amar ao próximo e o inimigo por uma declarada guerra e militância.

Dias depois do livro ser publicado, comecei a receber cartas e mensagens de leitores. Quase um ano depois, elas ainda lotam minha caixa de correspondência, várias por dia, em sua maioria escritas por evangélicos. Eu fui avisada para me preparar aos ataques e críticas viciosas, mas não é isso que recebo. Quase todas as mensagens contém alguma versão da mesma realização: “Essa é a história da minha vida. Obrigado por me ajudar a enxergar”.

Mel Gibson — “Coração Valente” (1995). 20th Century Fox

Para provar seus pontos, leitores narram suas histórias de vida em vívidos detalhes: Eles foram doutrinados em valores familiares do evangelicalismo ao ouvirem James Dobson no seu programa de rádio “Focus on the Family” (Foco na Família) diariamente. Eles foram às compras nas livrarias Cristãs e tinham comparecido aos eventos dos “Promise Keepers” (Mantenedores da Promessa) como parte do movimento masculino evangélico. Eles haviam abraçado os ensinos da cultura da pureza e estruturado seus casamentos ao redor da autoridade masculina e submissão feminina. Eles haviam orgulhosamente votado em Ronald Reagan e participaram dos “acampamentos de Guerreiros” promovidos em suas igrejas.

Apesar dessa íntima conexão da maioria dos leitores com essas questões, muitos expressaram o seu espanto ao serem, pela primeira vez, expostos aos contornos do mundo no qual eles haviam habitado por grande parte de suas vidas. Um homem explicou: “Eu havia esbarrado em várias árvores, mas nunca havia visto a floresta”. A intensidade emocional das respostas que recebo e sua frequência me chocam até hoje.

Ao mesmo tempo que evangélicos não são os únicos a preferirem relatos bajuladores do seu passado, eles se agarraram a essas narrativas por razões evangélicas diferentes. Não muito tempo atrás, eu dei uma entrevista acerca do livro a uma estação de rádio Cristã. Ambos entrevistadores foram muito respeitosos e envolvidos, mas um era claramente mais cético que o outro. Apenas quando saímos do ar que ele me perguntaria a questão que o estava deixando profundamente incomodado. Sabendo que eu sou Cristã, ele me questionou se eu achava que alguém gostaria de se tornar cristão depois de ler meu livro.

A pergunta não me surpreendeu. Eu mesma havia me questionado isso ao embarcar nesse projeto. Mas a história não é uma campanha de marketing para fazer convertidos. Mais importante, minha própria pesquisa deixou claro para mim os perigos de se encobrir duras verdades a fim de proteger a marca — ou, nas palavras dos próprios evangélicos, “o testemunho da igreja.”

No final do meu livro eu cito as palavras da sobrevivente de abuso Rachel Denhollander. Em uma poderosa declaração no julgamento de Larry Nassar, o ex-médico da equipe de ginástica americana que foi acusado por cometer vários crimes sexuais contra atletas que aspiravam um lugar na equipe, Denhollander repreendeu Nassar por buscar perdão sem arrependimento. Uma evangélica conservadora, a Sra. Denhollander também voltou sua atenção para os abusos dentro do evangelicalismo, confrontando aqueles que procuravam encobrir o abuso a fim de proteger o testemunho público da igreja. “O evangelho de Jesus não precisa de proteção”, disse ela em uma entrevista. Jesus pediu apenas obediência, o que significa dizer a verdade e buscar a justiça, a Sra. Denhollander acrescentou.

Quase todas as cartas que recebi de leitores evangélicos contém palavras de gratidão pelas duras verdades que agora vem à superfície para serem encaradas. Muitos reconheceram sua própria cumplicidade na história que conto. E reconhecem que é apenas levando em conta esse passado que eles podem re-alinhar seu testemunho com a busca da verdade e da justiça que sua fé exige

“Chocante e impactante. Estou terminando a leitura do livro da Dr. Du Mez e a cada página fica evidente o espelhamento do movimento evangélico americano no Brasil. Fica o apelo aqui às editoras, “Jesus And John Wayne” precisa ser traduzido! A influência das ideias discutidas no livro apontam muitas razões pelas quais hoje nós temos uma igreja alinhada acriticamente a um projeto de poder. J&JW é um chamado ao reconhecimento, arrependimento e o resgate da cultura profética na igreja. Tem muito a expor e muito a acrescentar.” — Matheus Monteiro, tradutor.

Texto Original:

https://www.nytimes.com/2021/05/27/special-series/kristin-kobes-du-mez-what-we-believe-about-history.html

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